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sábado, 24 de outubro de 2009

I see your true colors*

Esta é, acho, a primeira postagem "on demand" do Gene Repórter. Não, não é um post pago. Não recebi um tostão. Apenas uma sugestão de tema feita por @mariaguimaraes com base em uma troca de tweets entre @Karl_Ecce_Med, @uoleo, @oatila e eu. Confesso que é uma área que está bastante longe de minha especialidade, de modo que tive um bom trabalho de pesquisa - ainda assim corro risco de ter escrito muitas bobagens.

Reinaldo José Lopes publicou no Laboratório da Folha Online uma postagem sobre um estudo com saguis-de-cara-branca. Mais especificamente a respeito de por que diabos nas populações desses símios há tanto indivíduos com visão dicromática (com dois tipos de cones, cada qual com pico de sensibilidade para ondas de comprimentos diferentes) quanto tricromática (claro, com três tipos de cones).

Sabia-se já, de estudos anteriores, que os com visão tricromática tinham vantagem em distinguir mais claramente objetos avermelhados de um fundo esverdeado - isso é particularmente útil na localização, por exemplo, de frutos maduros em meio à folhagem.

Se essa fosse toda a história, então, por seleção natural, a visão dicromática deveria ter desaparecido por seleção direcional[**]. Então claro que havia outra coisa.

Essa outra coisa, sugerem os resultados do novo estudo (Caine et al. 2009), é uma maior acuidade visual em um ambiente mais escuro. (Um outro estudo, do mesmo grupo de pesquisadores, analisou a vantagem dos dicromatas em termos de encontrar alimentos camuflados - com a mesma cor do ambiente: por exemplo, um objeto verde sobre fundo verde ou um objeto laranja sobre um fundo alaranjado - Caine et al 2003.)

Até aqui está tudo bem explicado na postagem de Lopes no blogue da Folha Online.

O que deve ficar claro é que não se trata de uma negação da seleção natural. Não está a ocorrer a sobrevivência diferencial dos menos aptos. Por *definição*, uma característica evolutivamente vantajosa é uma que faz com que os indivíduos que a portem tenham, em média, mais descendentes na geração seguinte do que os indivíduos que não a portem. Então, o dicromatismo *é* uma característica (ao menos para certas circunstâncias) vantajosa. (Uma certa confusão pode se dar pelo fato de Lopes ter usado uma comparação com daltônicos humanos e pelo fato de considerarmos o daltonismo um defeito visual - na *nossa* vida *atual*, os daltônicos têm uma desvantagem geral, o que explica o baixo número de daltônicos nas populações humanas atuais. Deve se lembrar ainda que uma desvantagem não é uma desvantagem absoluta - ela é uma desvantagem em um dado *ambiente*, se houver uma alteração no ambiente, uma característica que era desvantajosa pode passar a ser vantajosa e vice-versa. Um exemplo de livros-textos é o do alelo da hemoglobina que causa anemia falciforme - em dose dupla é normalmente letal, o heterozigoto pode desenvolver anemia falciforme em determinadas circunstâncias, mas confere proteção contra o Plasmodium sp.: em regiões em que a malária é endêmica, os heterozigotos têm vantagem e o alelo recessivo da anemia falciforme permanece na população; em regiões em que não há malária, pessoas homozigotas de alelos que não causam anemia falciforme têm vantagem e o alelo que causa anemia tende a ser eliminado.)

Se o dicromatismo é vantajoso, então, por que o *tricromatismo* existe? Pela vantagem exposta acima. Mas isso não pode ser a história toda. Se o tricromatismo for ligeiramente mais vantajoso do que o dicromatismo (digamos, indivíduos da espécie passem mais tempo em áreas mais claras do que em regiões mais sombreadas), então a seleção faria com que a população fosse composta inteiramente por tricromatas[**]. De modo oposto, se o dicromatismo fosse ligeiramente mais vantajoso (p.e., os indivíduos ficam mais tempo em regiões mais sombreadas), então o dicromatismo deveria estar fixado. Então ambos são igualmente vantajosos? Vejamos.

Na situação em que não há vantagem relativa, teríamos uma neutralidade efetiva. Isso resolveria o problema da fixação pela seleção. No entanto, o tamanho populacional dos saguis é limitado. Sua área de distribuição total é de cerca de 230 mil km2 (Fig. 1). Se considerarmos que eles se distribuem homogenamente por essa área e aplicarmos uma densidade média de 3,5 indivíduos/km2 (São Bernardo & Galetti 2004) teremos um total de aproximadamente 800 mil indivíduos. Esse número está certamente superestimado - os animais não devem se distribuir por toda a área do mapa.

Figura 1. Área de distribuição de sagui-de-cara-branca (Callithrix geoffroyi): +. Fonte: Grelle & Cerqueira 2006.

Mas tomando esse número de 800 mil, eles vivem em bandos de 8 a 10 indivíduos, com um casal dominante - apenas o casal se reproduz no grupo. Isso faz com que o tamanho da população efetiva seja de cerca de 200 mil indivíduos. Isso faria - usando cálculos de probabilidade de perda de mutações neutras - que em cerca de 30 gerações, a variante tricromática fosse perdida. Os saguis-de-cara branca maturam em cerca de 1 ano e meio e vivem cerca de 10 anos, com o sistema do casal dominante (os demais indivíduos terão oportunidade de se reproduzir quando o casal dominante morrer - ou quando fundarem seu próprio grupo) - em pouco menos de 300 anos haveria de se perder o polimorfismo visual entre os saguis.

A existência atualmente do polimorfismo poderia ser explicada - sob o modelo neutro - se a mutação for relativamente recente: não houve tempo ainda para nenhuma das variantes se fixar. Mas 300 anos são pouco tempo. Então teremos que assumir que na origem o tamanho efetivo da população fosse muito menor (o que não é um absurdo de se pensar - especialmente se voltarmos ao tempo muito anterior ao surgimento dos saguis-de-cara branca, na época de um ancestral em comum de vários macacos do Novo Mundo) ou uma mudança no regime seletivo ao longo do tempo.

Temos, em suma, algo ainda não muito bem entendido na evolução e manutenção do polimorfismo visual nos saguis - e nos demais primatas.

A história é ainda mais complicada pelo fato de se detectar o tricromatismo também em lêmures (Leonhardt et al. 2008), isso pode significar que a visão tricromática seja ainda mais antiga e que várias linhagens a tenham perdido ou que tenha sido adquirida várias vezes de modo independente. Como nos macacos antropóides os genes dos três pigmentos visuais ocupam lugares distintos no cromossomo X, enquanto que nos macacos do Novo Mundo, os genes de dois dos três pigmentos ocupam uma mesma posição cromossômica (loco gênico) - ou seja, são alelos, é mais provável que tenha havido pelo menos dois eventos independentes de surgimento da visão tricromática entre os primatas. O fato de nos macacos do Novo Mundo dois genes serem alelos faz com que apenas indivíduos que sejam heterozigóticos possam ser tricromatas - para isso é preciso ter dois X, ou seja, apenas fêmeas podem ser tricromatas (uma boa revisão da genética e evolução da visão tricromática em primatas é encontrada em Surridge et al. 2003).

*Verso de sucesso de Cyndi Lauper.
Upideite(27/out/2009):
**O complicador é que os tricromatas nos macacos do Novo Mundo são fêmeas heterozigóticas. Na verdade, pode estar a atuar uma seleção favorável ao heterozigoto, que propiciaria uma seleção balanceadora - como no caso dos alelos da hemoglobina em regiões com malária endêmica.

Um comentário:

Maria Guimarães disse...

viu como era impossível acompanhar uma discussão dessa complexidade pelo twitter?? obrigada, agora sim.

fico pensando se tem alguma partição ecológica dentro da população - um grupo se dá melhor nas áreas mais escuras, e outro nas mais claras. eles olharam isso?

poderia ser um processo capaz de dar origem à especiação, se a especialização se aprofundasse por uma necessidade de divisão de recursos.

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