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sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Muito barulho por Nasa: das bactérias que usam arsênio

ResearchBlogging.orgEquipe de cientistas americanos, liderada por Felisa Wolfe-Simon, aparentemente fizeramfez uma interessante descoberta microbiológica: bactérias extremófilas capazes de incorporar arsênio no lugar de fósforo em macromoléculas como o ADN.

O indício é que cultivando essa cepa em um meio sem acréscimo de fosfato e com arsenato radiomarcados, as bactérias se desenvolvem e isolando-se o ADN (que apresenta radioatividade) obtêm-se em análises como espectrometria de massa os arsênios.

É uma condição totalmente artificial. Mesmo apresentando as águas do lago em que vivem a bactéria altos índices de arsênio, o teor de arsênio usado para isolar a cepa foi muito mais alto e nas condições naturais há presença abundante de fósforo.

A publicação do estudo na revista Science em que relatam o achado foi precedida por uma nota da Nasa anunciando uma coletiva de imprensa:
"WASHINGTON -- NASA will hold a news conference at 2 p.m. EST on Thursday, Dec. 2, to discuss an astrobiology finding that will impact the search for evidence of extraterrestrial life. Astrobiology is the study of the origin, evolution, distribution and future of life in the universe."

A coletiva seguiu o tom sensacionalista tentando dizer que a descoberta era revolucionária, que iria reescrever os manuais e os livros-texto...

Vários blogueiros já fizeram boas análises contextualizando bem a descoberta e dando sua real dimensão (beeeeeem menor do que todo o auê propositadamente gerado): PZ Myers no Pharyngula, Roberto Berlinck no Quiprona, Juscimar Silva no Geófagos e Eli Vieira e Rodrigo Véras no formspring do Evolucionismo.

O que tenho a notar é o caráter bipolar da Nasa. O texto científico é relativamente sóbrio, mesmo que faça algumas afirmações bastante ousadas frente aos indícios que possui (o que me faz sentir menos culpado em relação à minha tese de doutorado em que também faço algumas suposições um tanto quanto atrevidas - mas ponho tudo no condicional, não cravo nada).

Dizem no resumo:
"Life is mostly composed of the elements carbon, hydrogen, nitrogen, oxygen, sulfur and phosphorus. Although these six elements make up nucleic acids, proteins and lipids and thus the bulk of living matter, it is theoretically possible that some other elements in the periodic table could serve the same functions. Here we describe a bacterium, strain GFAJ-1 of the Halomonadaceae, isolated from Mono Lake, CA, which substitutes arsenic for phosphorus to sustain its growth. Our data show evidence for arsenate in macromolecules that normally contain phosphate, most notably nucleic acids and proteins. Exchange of one of the major bio-elements may have profound evolutionary and geochemical significance."
["A vida é composta principalmente dos elementos carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, enxofre e fósforo. Embora esses seis elementos formem ácidos nucleicos, proteínas e lipídios e, assim, o grosso da matéria viva, teoricamente é possível que alguns outros elementos na tabela periódica possam servir às mesmas funções. Aqui descrevemos uma bactéria, cepa GFAJ-1 das Halomonadaceae, isolada do lago Mono, CA, que substitui fósforo por arsênio para sustentar seu crescimento. Nossos dados mostram indícios de arsenato em macromoléculas que normalmente contêm fosfato, mais notadamente ácidos nucleicos e proteínas. A troca de um dos principais bioelementos pode ter um profundo significado evolutivo e geoquímico."]

No texto seguem dizendo o quão quimicamente similar é o arsênio em relação ao fósforo, como o íon arsenato comporta-se em sistemas vivos de modo parecido com os íon fosfato (sendo essa, aliás, uma das razões da toxicidade do arsênio inorgânico) e como para elementos-traço como molibdênio e zinco há substituições registradas (por tungstênio e cádmio respectivamente) como cofatores em enzimas. Basicamente estão dizendo: "olha, o que nós encontramos não é tão absurdo assim". Não falam absolutamente nada sobre vida extraterrestre.

Bem diferente do que apresentam para a imprensa. Como se o achado fosse totalmente diferente do que já se encontrou antes. O que produziu manchetes com expressões como "bactéria ET", "DNA ET", "muda definição de vida"...

Não se trata de nada ET. A cepa pertence a um grupo bem terráqueo de bactérias: Halomonaceae - provavelmente do gênero Halomonas. O ADN com arsênio foi obtido em uma situação totalmente artificial: com ausência de fósforo (salvo como contaminantes) e suplementação de arsênio. E não muda a definição de vida porque não há nenhuma definição de vida proposta que a delimite pela necessidade de uso de fósforo - na verdade há muito existe a especulação de formas de vida baseada em silício em substituição ao carbono, p.e.., o que nos leva a que a afirmação da Nasa de que a descoberta deve impactar a pesquisa de busca de vida fora do planeta é despropositada - sem falar que a abundância do fósforo no universo (7.000 ppb em massa ou 300 ppb em número de átomos) é muito maior do que de arsênio (8 ppb em massa ou 0,1 ppb em número de átomos): seria como seu chefe dizer que você recebeu um substancial aumento salarial porque seus vencimentos passaram de 3.000 reais mensais para 3.001 reais ao mês (ele poderia complementar: "se você recebeu 1 real a mais por 10 horas de trabalho a mais, isso abre uma nova perspectiva de quanto você poderá receber no futuro; o céu é o limite, meu filho").

Não se sabe ainda se o ADN (e outras macromoléculas) com arsenato é funcional - e há ainda desconfianças a respeito de se houve mesmo incorporação de arsênio.*

A descoberta é interessante por si mesma. Não merecia ser estragada pelo sensacionalismo, que, naturalmente, leva à desinformação.

Referência
Wolfe-Simon, F., Blum, J., Kulp, T., Gordon, G., Hoeft, S., Pett-Ridge, J., Stolz, J., Webb, S., Weber, P., Davies, P., Anbar, A., & Oremland, R. (2010). A Bacterium That Can Grow by Using Arsenic Instead of Phosphorus Science DOI: 10.1126/science.1197258

*Upideite(09/dez/2010): Carlos Hotta, no Brontossauros, comenta mais detalhadamente a questão da incorporação ou não do arsênio nas macromoléculas.

Upideite(17/dez/2010): Os autores responderam parte das críticas feitas e dúvidas levantadas. (Via @ciencianamidia.)
Upideite(04/jan/2011): Aqui uma crítica à atuação dos blogues de ciências.


Upideite(30/mai/2011): Temos agora uma segunda rodada, com a publicação de críticas ao trabalho e as respostas da equipe de Wolfe-Simon na Science. A Nature comenta o round.

Upideite(20/jan/2012): Rosie Redfield recebeu amostras das tais bactérias e relata que não conseguiu reproduzir os resultados anunciados pela equipe de Wolfe-Simon. Via Carlos Orsi.


Upideite(09/jul/2012): Agora são dois os trabalhos que falharam em reproduzir os resultados alegados pela equipe de Wolfe-Simon. Aparentemente, as GAFJ-1 são tolerantes a arsênio, mas dependem de fósforo.**


**Upideite(10/jul/2012): Rodrigo Véras comenta sobre os novos estudos no Evolucionismo.

9 comentários:

Roberto G. S. Berlinck disse...

Caro Takata,

Gostei do "caráter bipolar da Nasa". Tal agência espacial, formada por muitos cientistas de primeira linha, deveria ponderar muito bem o que divulgar para a mídia e imprensa escrita. Talvez isso tivesse acontecido se o Carl Sagan ainda estivesse trabalhando lá.

Como mostra minha segunda postagem sobre o assunto, "Produtos naturais arseno-orgânicos", moléculas orgânicas que contém arsênio (ou arsênico?) são muito mais comuns do que se pensa (e veja que eu coloquei no blog apenas ALGUNS exemplos do artigo de revisão de Edmsonds et al., Arsenic compounds from marine organisms Natural Product Reports, 10 (4) DOI: 10.1039/NP9931000421).
Seria realmente bacana se os jornalistas que publicam estas notícias procurassem se informar melhor, com dados da literatura (viva a internet!!) ou entrevistando especialistas. Da forma como foram divulgadas, as notícias só confirmam que a pressa é a inimiga da perfeição.

abraços,
Roberto Berlinck

none disse...

Berlinck,

Pois é, especialmente em organismos marinhos a presença - e até o uso - de arsenocompostos são relativamente comuns. (Os autores até mencionam a presença de tais compostos - e notam que a diferença é que ainda não havia sido registrada a presença de arsênio em macromoléculas.)

A minha desconfiança particular é que esse barulho que fizeram é por causa dos cortes de verbas que sempre ameaçam as pesquisas não-biomédicas (ou não-estratégicas). Querem chamar a atenção do público e despertar simpatias - pra qq anúncio de cortes de verbas para a Nasa provoque reações apaixonadas de protesto. Mas é só uma teoria conspiratória minha.

Neste episódio não boto culpa nos jornalistas. Foram na onda do oba-oba da Nasa: "Poxa, se a Nasa está dizendo isso..." Mas, de fato, se fizessem a lição de casa, esse tipo de sensacionalismo diminuiria - mas como sensacionalismo vende...

[]s,

Roberto Takata

none disse...

Quanto ao arsênio ou arsênico, tanto faz. Mas como 'arsênico' é também usado para designar compostos de arsênio como o ácido arsênico e o óxido de arsênio, prefiro usar arsênio para me referir ao elemento.

[]s,

Roberto Takata

luisbr disse...

Takata, parabéns pelo texto e pela análise rápida e equilibrada.

Química Virtual disse...

Takata, ia escrever um artigo de química a respeito deste 'descoberta', mas após seu comentário, vou esperar mais um pouco :-)

[]'s

none disse...

Valeu, Luís. (Mas nem foi rápida. Normalmente eu deixo passar a hype pra comentar com mais base esse tipo de notícia.)

Salve, Chemello,

Valeu pela visita. Qual comentário?

[]s,

Roberto Takata

Gabriel Cunha disse...

Texto excelente Takata, o conteúdo está muito bem explicado e desmistifica os absurdos que vimos escritos por aí.

Em breve soltarei alguns comentários a respeito dessa descoberta, ainda estou lendo o artigo e o material complementar.

Abraços

none disse...

Salve, Cunha,

Valeu. Quando publicar sua postagem, não se esqueça de nos avisar.

[]s,

Roberto Takata

none disse...

Jacob,

Valeu pela visita e comentário.

É, também acho que foi um exagero por parte da agência americana.

Não creio que seja questão da assessoria, não. Ou não apenas da assessoria.

[]s,

Roberto Takata

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