Lives de Ciência

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sábado, 25 de fevereiro de 2012

Eva mitocondrial: por que não é a primeira mãe?



Há vários equívocos muito comuns quando se fala em Eva mitocondrial (ou equivalente para outros organismos não-humanos), um modo relativamente fácil de se desfazer alguns desses mal-entendidos é visualizar uma figura esquematizando uma hipotética árvore genealógica. A Figura 1 representa uma população de tamanho constante com 10 indivíduos - 5 fêmeas (à esquerda) e 5 machos (à direita) - ao longo das gerações. A geração inicial 00 está na base da figura, sucedidas por gerações de descendentes (sem sobreposição de gerações) - a mais recente está no topo (geração 18). Cada indivíduo é representado por um genótipo: um lócus diploide do tipo autossômico representados por letras (com o fator herdado da mãe à esquerda e o fator herdado do pai à direita) e um lócus haploide de herança exclusivamente materna (representando, a herança mitocondrial) simbolizado por um número de 0 a 9. As linhas representam as relações de ancestralidade/descendência dos alelos/haplótipos. As linhas rosas indicam as relações de ancestralidade dos haplótipos mitocondriais dos indivíduos da geração 18; as linhas azuis, as relações de ancestralidade dos alelos autossômicos presentes na geração 18.


Figura 1. Genealogia de uma população hipotética diploide de reprodução sexual.

Repare que chamar a Eva mitocondrial (ou o equivalente para outras espécies) de "primeira mãe" passa uma noção equivocada. Há várias outras fêmeas anteriores ao indivíduo III da geração 13 (destacado em amarelo) que fazem parte das linhagens de ancestralidade-descendências dos indivíduos da geração 18. Além disso, contemporaneamente à fêmea III-13 (a "Eva mitocondrial" dessa população hipotética), há outras fêmeas - inclusive uma que contribui geneticamente com os indivíduos da geração 18: com parte dos alelos E (6 dos 20 alelos da geração 18 provêm da fêmea V-13). Em outras populações, a "Eva mitocondrial" poderia não ter nenhuma outra contribuição genética a não ser com as próprias mitocôndrias.

Dizer que a "égua ancestral viveu há 140 mil anos" não é incorreto. Mas é tão correto quanto dizer que viveu há 10 mil anos ou há 200 mil anos - naturalmente, não será a mesma égua - pelo simples fato de que há mais do que uma égua ancestral.

Na população que usamos como exemplo, o indivíduo V-00 é também uma fêmea ancestral de todos os indivíduos da geração 18. Assim como V-12.

É preciso também ter cautela quanto à interpretação de estudos sobre Eva mitocondrial (e equivalentes em outras espécies). A suposição básica é que a herança é exclusivamente materna e não há recombinação. Mas se sabe que ocorre recombinação do ADN mitocondrial (inclusive em humanos). Supõe-se que seja a uma taxa baixa o bastante para não afetar significativamente a técnica. Porém isso não está bem estabelecido.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

2012: O Último Carnaval? Spoiler Alert====>Não!

Blogagem coletiva Fim do Mundo
"Berros, súplicas, sangue, apitos sumiam-se na festa. Ninguém sabia donde vinham as pauladas — e era bom evitar opiniões."
Graciliano Ramos, 1957. "Carnaval 1910."


Já definiram bem a história do fim do mundo em dezembro de 2012 como "o bug do milênio Maia" (acrescentaria, "aliado ao sistema internacional de unidades da Nasa").

A civilização maia teve seu auge entre os anos correspondentes a 300 e 900 d.C., mas os registros arqueológicos se estendem de 800 a.C. a 1520 d.C. na Mesoamérica, indo das terras da península do Iucatã no atual México até Honduras e El Salvador (Navarro 2008). Durante sua história desenvolveu três sistemas de contagem de tempo: a) um ciclo de 260 dias; b) um de 365 dias e c) um de contagem longa.

O de 260 dias, chamado pelos estudiosos de Ciclo Sagrado Maia ou tzolk'in, teve origem possivelmente no paralelo 15°N - onde o intervalo correspondia à passagem do tempo entre duas datas nas quais o Sol passava pelo ponto zenital - isto é, nas duas ocasiões consecutivas de Sol a pino em um ano solar (Malmstrom 1973). Os dias eram contados pela combinação entre ciclos de 13 e de 20 dias. No ciclo de 20 dias, cada dia recebia um nome: na sequência, Imix, Ik, Akbal, Kan, Chicchan, Cimi, Manik, Lamat, Muluc, Oc, Chuen, Eb, Ben, Ix, Men, Cib, Caban, Eznab, Cauac e Ahau. O de 13 dias eram designados por números. Assim, um, digamos, 10 Muluc, se seguiria a 11 Oc, este a 12 Chuen, aí 13 Ed, então 1 Ben, 2 Ix etc. (Naturalmente, os maias usavam números em sua própria escrita e cada um com seu próprio nome.) O uso do tzolk'in estava fortemente vinculado às práticas religiosas. (Smiley 1962.)

O de 365 dias, claro, correspondia ao Ciclo Solar, também designado pelos estudiosos de haab'. Aqui, os dias eram contados pela combinação de 18 ciclos de 20 dias (de 0 a 19) - cada ciclo correspondendo a um mês (Pop, Uo, Zip, Zotz, Tzee, Xul, Yaxkin, Mol, Chen, Yax, Zac, Ceh, Mac, Kankin, Muan, Pax, Kayab, Chumhu) - mais um mês de 5 dias (de 0 a 4): Uayeb. P.e. 18 Chumhu era seguido de 19 Chumhu, depois 0 Uayeb, 1 Uayeb... 4 Uayeb, 0 Pop, 1 Pop, etc.

Combinando-se o tzolk'in com o haab', dois dias que recebiam os mesmos nomes nos dois ciclos eram separados pelo mínimo múltiplo comum entre 260 e 365, o que dava 18.980 dias ou 52 anos solares - formando o ciclo calendárico.

Para evitar confusão entre dias com os mesmos nomes entre ciclos calendáricos diferentes, o maias desenvolveram o Ciclo de Contagem Longa: uma contagem contínua dos dias a partir de um dia inicial remoto no tempo. A unidade básica era o kin, 20 kins correspondiam a um uinal; 18 uinals a um tun; 20 tuns a um katun e 20 katuns a 1 baktun. Um baktun correspondia, então, a 20 x 20 x 18 x 20 = 144.000 dias, pouco mais de 394 anos e meio. (Smiley 1962.)

O maior número que poderia ser representado por esse sistema seria então: 19 baktuns, 19 katuns, 19 tuns, 17 uinals e 19 kins. Ou seja, 2.879.999 dias.

O dia do nosso sistema de calendário que corresponderia ao início do Ciclo da Contagem Longa é incerto. Ao longo do tempo várias datas foram defendidas com base na correspondência de algumas datas com eventos astronômicos conforme os registros maias. As estimativas da correspondência do dia zero do ciclo longo tem variado entre 3645 a.C. e 2593 a.C. (Smiley 1962.)

Ou seja, a contagem dos ciclos longos deve terminar entre os anos de 4494 e 4772 da nossa era (e não em 2012 - a "previsão" de 2012 coincide com o fim do 13° baktun para uma certa estimativa do início da contagem longa)*. Isto é, teremos nosso último carnaval anual pelo menos pelos próximos 2.482 anos. E certamente além: se não por uma versão estendida da contagem longa, por qualquer outro evento, profecia ou coisa que o valha. Números redondos - sejam no sistema vigesimal modificado dos maias, sejam no sistema decimal sobre o calendário gregoriano (haja vista as inúmeras profecias apocalípticas milenaristas) - ou próximos a eles costumam ser palpites bastante populares.

Por exemplo, em 1910, a passagem do cometa Halley parece ter causado algum alvoroço com a especulação de que a cauda gasosa contaminaria a atmosfera com o venenoso cianogênio (além de outros efeitos como terremoto), no Canadá, nos EUA, e também no Brasil. Sua nova passagem, em 1986, apesar do grande interesse, parece não ter despertado a mesma apreensão. Porém, em 1997, desta vez com o cometa Hale-Bopp, especulações catastrofistas novamente ressurgiram (com direito a um episódio particularmente trágico) . À época da ativação do LHC, em 2008, mais destaque a preocupações com o fim do mundo: o acelerador criaria um buraco negro que terminaria por engolir o planeta. Em 2011, mais uma interpretação milenarista: uma não, duas (e do mesmo autor).

Há que se encarar, no entanto, o retrato dado pela mídia da reação popular a esses eventos com um certo grão de sal. Uma leitura pelo valor de face das narrativas jornalísticas nos passa a impressão de uma histeria generalizada. Um futuro historiador que se valer dos textos da imprensa de hoje, imaginaria que todo mundo em 2012 acreditava mesmo que 21 de dezembro era (será) a data do Armagedão. Certamente há indivíduos e grupos alarmados - mas parte deles estão alarmados exatamente em função do destaque (com registro tirante ao sensacionalismo, quando não descaradamente sensacionalista) dado. Mais uma vez, em nome de uma pretensa isenção, quase sempre sem nenhuma visão crítica, dão voz a grupo minoritário e um tanto excêntrico de profetas do apocalipse - quando uma contraposição é feita, muitas vezes, a refutação racional e factualmente embasada tem, no máximo, o mesmo peso do nostradamus de plantão.

Quando digo que certamente prognósticos sobre o fim do mundo continuarão a ocorrer para além do fim da contagem longa maia, não acho que eu esteja arriscando muito - mesmo sendo uma previsão de longuíssimo prazo: há muito dinheiro envolvido (alguém quer apostar?). Creio que o material a respeito do fim dos tempos possa ser considerado praticamente uma subindústria do filão místico.

Mas, com tal persistência, um dia acabam acertando a data.

Referências
Malmstrom, V.H. 1973. Origin of the Mesoamerican 260-day calendar. Science :181: 939-41.
Smiley, C. H. 1962. The Mayan calendar. Astronomical Society of the Pacific Leaflets 8: 327-34.

Obs: Esta postagem faz parte da blogagem coletiva organizada pelo Scienceblogs Brasil.

*Upideite(13/fev/2012): Carlos Orsi, em comentário a uma postagem dele, chama a atenção para o fato de aparentemente os maias considerarem apenas 13 baktuns.**
**Upideite(11/mai/2012): Um registro recém-anunciado, mostra um calendário do séc. 9 em que se contam pelo menos 17 baktuns.

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