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sábado, 21 de abril de 2012

O caso da borboleta (não necessariamente Atíria)

Ainda estou no começo da leitura de "Infinito em Todas as Direções", do físico e matemático britânico naturalizado americano Freeman Dyson (2000, Cia. das Letras, 386 pp.). O original é de 1988 e se baseia na série de Conferências Gifford do autor proferidas em 1985 em Aberdeen, Escócia -In Praise of Diversity. Uma passagem do segundo capítulo (e que também é reproduzida na orelha do livro) me fez pensar:

"Esta rápida excursão pelo universo começará com as supercordas e terminará com as borboletas. [...] Não explicarei o que são borboletas e supercordas. Explicar as borboletas é desnecessário, pois todo mundo já as viu. Explicar as supercordas é desnecessário, porque ninguém jamais as viu. [...] Supercordas e borboletas são exemplos que ilustram dois aspectos diferentes do universo e duas noções diferentes de beleza. As supercordas aparecem no início e as borboletas no final porque são exemplos extremos. As borboletas estão no extremo da concretude, e as supercordas, no extremo da abstração. Marcam os limites extremos sobre o qual a ciência pretende ter jurisdição. [...] Ambas, de um ponto de vista científico, são mal compreendidas. Cientificamente falando, uma borboleta é, no mínimo, um mistério tão grande quanto uma supercorda. Quando algo deixa de ser um mistério, deixa de chamar a atenção dos cientistas. Quase tudo o que os cientistas pensam e sonham são mistérios."

É uma passagem bastante bonita. E com a qual concordei de início. Mas refletindo um pouco mais, acho que discordo em vários pontos.

A começar pela questão da explicação. A necessidade de explicação não está na familiaridade ou não de um fenômeno. Mas sim se há o tal "mistério" a ser desvendado. Há uma porção de elementos a respeito das borboletas que as pessoas não entendem. Por exemplo, só relativamente recentemente entendemos como as borboletas voam - sim, elas batem as asas, mas elas apenas as movimentam para cima e para baixo: quando movimentam para baixo, empurra o ar para baixo e, em reação, o ar empurra as borboletas para cima; só que, quando as borboletas movimentam para cima, o inverso deveria ocorrer. No caso das aves, elas recolhem as asas ao trazê-las para cima, fazendo com que não haja um efeito grande do ar empurrá-las de volta para baixo; moscas e abelhas giram as asas, com efeito similar. No caso dos lepidópteros, o que os sustenta são vórtex do ar que passam pela superfície dorsal durante o voo. Outro aspecto extremamente familiar, porém de detalhes pouco conhecidos, é a metamorfose. Os biólogos do desenvolvimento, com seus instrumentos de biologia molecular, começaram a desvendar o processo de ativação e desativação de genes - é a mudança no padrão que explica boa parte do fato de um mesmo conjunto genômico produzir duas formas tão distintas quanto a lagarta e a borboleta adulta. E mais. Quantas espécies existem? Como essa diversidade se relaciona entre si? Como as borboletas (e mariposas) evoluíram? São todas questões intrigantes que os cientistas procuram desvendar. (Certo que boa parte desses novos conhecimentos não estavam disponíveis à época das conferências.) E todo esse conjunto ajuda a explicar as borboletas - mesmo que haja ainda uma panapaná de outros "mistérios" (o próprio Dyson lista alguns mais à frente: "Com essa massa quase microscópica de células nervosas, o animal sabe como acionar suas pernas e asas, como andar e voar, como encontrar seu caminho usando algum meio de navegação desconhecido por milhares de quilômetros de Massachusetts até o México. Como é possível fazer tudo isso? Como os padrões de comportamento do animal são programados primeiro nos genes da larva e depois traduzidos nas vias neurais da borboleta?"). (Da parte de supercordas, um bom livro de divulgação é o "O Universo Elegante", de Brian Greene, 2001, Cia. das Letras, 592 pp.).

Discordo também de que borboletas e supercordas estejam em extremos opostos de concretude - embora isso dependa da noção de concretude que se está a empregar. A concretude como objetos que se consideram parte da realidade implica que ambos - borboletas e supercordas - são objetos tidos por de existência concreta. O que quer que signifique 'realidade', borboletas e supercordas devem existir realmente. Por outro lado, ambos são entidades abstratas: chamamos de borboletas, na verdade, a uma classe de manifestações - visuais, auditivas, táteis; e supercordas são outras entidades, cuja manifestação é bem mais indireta. Pode-se objetar e dizer que supercordas (ou sua versão mais turbinada de p-branas) são construtos matemáticos teóricos que procuram explicar as propriedades de partículas; mas borboletas também são construtos teóricos - embora não matemáticos - que associamos aos sinais mencionados (visuais, táteis, auditivos...) - apenas que borboletas são construtos emprestados de um tempo pré-científico.

Também discordo que ambos os fenômenos estejam no extremo do território científico. De um lado, embora as supercordas sejam supostamente os constituintes básicos do universo (não haveria nada a partir do qual as supercordas fossem formadas), ao menos da porção material, há questões ainda mais próximas da metafísica: como a origem do Universo (incluindo das supercordas); de outro, há epifenômenos dos quais as borboletas são constituintes (e não estou falando do tal efeito borboleta), como as nuvens das monarcas migratórias, as redes ecológicas nas quais elas estão imersas (borboletas podem ser indicadores da saúde ambiental), populações de lepidópteros podem ser bons exemplos dos processos evolutivos em ação.

Apesar de toda essa discordância, no entanto, creio que concorde em essência com Dyson: os mistérios são o que move os cientistas. Mas volto a discordar de que, uma vez desfeito o mistério, o cientista perca o interesse. Ele deixa de se mover nessa direção, mas é bem capaz de admirar a beleza do ex-mistério: o efeito da compreensão é algo que pode embasbacar o cientista; mesmo que ele já saiba do fato, ao se dar conta de que aquilo já é sabido e de como tal conhecimento foi obtido, o frescor do "eureka" de Arquimedes rebrota espontaneamente (mais ou menos como todo mundo - ao menos os que não são mal-humorados crônicos - ri das mesmas piadas de Chaves, não importa se é a milésima vez que revê o episódio). Não deixo de admirar o arco-íris mesmo conhecendo os processos ópticos por trás, nem de apreciar o voo desengonçado da borboleta sabendo dos torvelinhos aéreos, nem de me entreter com as máquinas de Rube Goldberg tendo ciência da cinética e da mecânica newtonianas.

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