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quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Denise Fraga, eliminar a Química do currículo é mesmo a solução? Não seria precipitado?*

A atriz da Rede Globo de Televisão Denise Rodrigues Fraga Villaça escreveu um artigo na Folha de São Paulo reclamando do conteudismo escolar pegando a Química pra cristo (e sobrando até pra biologia): [cuidado, paywall poroso!] "Química, pra que te quero?".

Arrisquei-me a discutir algo similar (com conclusão virtualmente oposta), mas em um contexto de educação *informal*, não na escola. Não me sinto muito confortável discutindo políticas educacionais. Não tenho formação na área, não cursei a Escola de Teatro Martins Pena.

Assim, não irei discutir tanto sobre como a educação deve ser e o que deve ser ensinado, quanto apontar inconsistências nas críticas da atriz e convidar para um outro olhar.

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No primeiro parágrafo a atriz faz a provocação: "Que me perdoem os químicos, mas alguém poderia me dizer por que ainda se estuda química nas escolas?" Curiosamente, ela mesmoa dá uma resposta logo em seguida: "É uma linda ciência e concordo que deveríamos ter ao menos um ano de estudo da matéria para entender a composição das coisas que juntas e inter-relacionadas compõem o Universo."

A bem dizer, a Física dos Elétrons de Valência - aka Química - trata só da matéria comum: átomos formados por um núcleo de prótons e nêutrons orbitados por elétrons ou na forma de plasma - que compõe menos de 5% do Universo (uns 70% são formados por energia escura e uns 25% por matéria escura). Mas no nosso dia a dia está ostensiva e fundamentalmente presente. Dá mesmo para abrir mão disso? Quando há campanhas contra aditivos químicos nos alimentos vamos confiar apenas no que nos dizem ou usaremos nossos instintos para saber quem tem ou não razão? E sobre o uso e controle de agrotóxicos? Medidas de combate à poluição atmosférica, das águas e do solo? A sua resposta é: "O acesso à informação anda no nosso bolso a um clique de nossos dedos e mesmo assim precisamos decorar os nomes do aparelho reprodutor dos platelmintos?/Podemos saber de tudo navegando por aí. Tanto pra aprender! E quem nos ensina a escolher o que queremos saber?". Bem, há mais de um aspecto que precisamos levar em conta:

1) Por enquanto, pouco mais de 100 milhões de pessoas têm acesso à internet. Cerca de metade dos brasileiros *não* tem acesso à informação "a um clique".
2) É preciso ter uma certa habilidade para pesquisar na internet: saber os termos para pesquisar e filtrar os resultados. Seria interessante que se ensinasse a nossos filhos nas escolas, ao menos assim me parece. Mas isso substitui as aulas de química e de biologia? Como pesquisar sobre aparelho reprodutor de platelmintos se você não sabe o que significa "aparelho reprodutor" e nem sabe que platelmintos existem? A pesquisa tende a se tornar ineficiente e há grandes os riscos de ir parar em uma página pouco confiável.
3) Talvez a maturidade a respeito da escolha do que queremos saber passe por ter um bom conhecimento básico e que seja amplamente partilhado. Algum aluno pode se interessar por saber mais como a pesquisa por melhores corantes de tecidos levou ao desenvolvimento da indústria da química fina, que, entre outras coisas, permitiu o desenvolvimento de novos medicamentos. Mas como ele iria saber que se interessa por isso sem nem saber sobre química? Como teremos alunos inclinados a serem químicos, bioquímicos, engenheiros químicos, petroquímicos, técnicos diversos (como aqueles essenciais que fazem testes de segurança de um sem número de compostos que você e todo mundo usa: de cosméticos a alimentos e medicamentos -?) sem que eles saibam o que é química?
4) Decorar o nome do aparelho reprodutor dos platelmintos - que, por acaso, tem o mesmo nome do nosso: "aparelho reprodutor" (sim, alguns órgãos têm nomes diferentes como o "poro genital"; outros, como "testículo", o mesmo) - é menos importante do que entender a diversidade de modos reprodutivos entre os seres vivos e como os padrões de similaridades e diferenças nos unem a todos. Sério, Denise Fraga, não faz sua cabeça explodir saber que somos relacionados por *parentesco* aos platelmintos? Saber que temos um ancestral em comum remoto com eles e outros ancestrais em comum - mais recentes ou mais antigos - com todos os demais seres vivos conhecidos até o momento? Saber que a despeito de tantas diferenças na aparência, platelmintos e nós, somos formados essencialmente do mesmo modo: a partir da fusão de células reprodutoras e posterior divisão celular e diferenciação das células resultantes?

Para a atriz, ensinar um jogo seria mais negócio: "Mas por que não optar por xadrez, por exemplo? Você já viu alguém jogar cadeias de carbono e hidrogênio com um amigo numa tarde chuvosa? Imagina que maravilha seria se todos nós fôssemos potenciais jogadores de xadrez formados pela escola?". Novamente, vários aspectos:

1) Há escolas que ensinam xadrez e outros jogos de tabuleiro e salão, além de práticas desportivas diversas (e até artes dramáticas). Mas não fazem isso *no lugar* da química. São atividades distintas, não concorrentes.
2) Imagina, então, se todos fôssemos pessoas que entendessem bem de química? Uma porção de dinheiro seria economizada fugindo-se de bobagens pseudocientíficas como homeopatia - com o bônus de melhora em nossa saúde. Não cometeríamos imprudências várias: como queimar a mão no gesso, ingerir metanol, cozinhar com ascarel, deixar de vacinar por causa do esqualeno, misturar água sanitária com amoníaco, provocar incêndio por largar pano com linhaça, etc., etc., etc.
3) Resistirei à tentação de maldar com a imagem de dois amigos lançando moléculas hidrocarbônicas um no outro (de compostos psicoativos a secreções biológicas); mas há vários jogos baseados na química - eu adorava os kits de químico mirim ou, em vez de decorar a tabela periódica, pode-se jogar com ela.

Provavelmente há necessidade na revisão da abordagem, já que nem você, nem seus filhos aprenderam adequadamente - não que eu saiba tudo o que se deva saber sobre química. Mas será que essa revisão é a simples eliminação da disciplina ou sua drástica redução a apenas um ano durante todos os 12 anos do ensino básico? Não poderia justamente ser uma melhora na ênfase da relevância do conhecimento químico? Da aproximação de tais conhecimentos com o nosso dia a dia? (Não são nenhuma abordagem revolucionária e estão presentes como parâmetros curriculares nacionais desde meados da década de 1990. Talvez o problema seja de sua efetiva implementação.)

*Uma das vantagens de ter uma cultura mínima em Química é entender a piada do título.

Upideite(07/ago/2014):  Uma compilação do que outros blogues de ciências comentarem será feita aqui.

Ceticismo.net: Químicos, para que vos quero?
Jornal da Ciência: Química: como te quero!*

Upideite(08/ago/2014): Só estou pegando no pé, mas Denise Fraga cometeu um autoplágio, muito do que ela escreveu para a Folha, ela já havia escrito para a revista Crescer.

Para a atriz, sem surpresas, ir ao teatro é mais importante do que conhecer química. Bem, um bom número de brasileiros também viveram até hoje sem nunca ter assistido a uma única peça de teatro. É triste, mas ao mesmo tempo revela que o teatro não é tão importante assim para se usar no dia a dia. Não digo que as pessoas não devam ir ao teatro, acho que até devem ir e seria interessante haver uma introdução à cultura do teatro para crianças. (Eu pessoalmente não tenho as melhores lembranças da experiência com a nobre arte dramática - não entro em detalhes, pois seria oversharing e não vem ao caso.) Mas, se o argumento é que o ensino da química não é importante porque as pessoas não usam, bem, teatro seria menos importante ainda. E também posso baixar encenações de Shakespeare na internet, bem como o texto, se eu quiser impressionar alguma gateeenha recitando trechos de Romeu e Julieta.

O texto na Crescer é de 2009; o da Folha, de agora, 2014. Ela já achava o ensino da química na escola ruim há 5 anos. Não sei se chegou a trocar de escola, a contratardo professor particular, a ter ela mesmo aproveitado que o conhecimento de química estava a um clique de distância e usado isso pra ensinar a seus filhos. Se não fez, não foi um tanto relapsa e omissa quanto à educação dos filhos? Se o fez, não significa que o "conhecimento a um clique de distância" não é tão efetivo assim?

Upideite(08/ago/2014): Ainda é só pegação de pé, mas, em 2002, o Conselho Regional de Química da 4a Região cedeu espaço para que cenas do filme que ela estrelava fosse gravado. Fosse, hoje, o pessoal do CRQ-IV poderia aproveitar para dar uma palestra sobre a importância do conhecimento de química para uma pessoa poder exercer sua cidadania mais plenamente.

Upideite(10/ago/2014): Disclêimer - sei que pelo texto acima não parece, mas eu sou fã do trabalho de Denise Fraga como atriz.

Upideite(16/ago/2014): A Sociedade Brasileira de Química manifestou-se sobre o texto na Folha.

*Upideite(29/set/2014): adido a esta data.

5 comentários:

Alexandre disse...

Tenho certeza que a fórmula de ensino usada em nossas escolas poderia ser melhorada. Sem nenhuma autoridade no assunto, eu tenho grande simpatia pelo método de aprendizado por projetos, pois me parece buscar o que mais falta na escola: alinhar o interesse e curiosidade da criança com o conteúdo a ser aprendido, além do enorme valor didático de aprender fazendo.

Mas a Denise Fraga foi de um simplismo lamentável. Sugerir que a internet substitui o conteúdo escolar foi muito infeliz. Como você disse, a criança ou jovem não teriam nem a base pra julgar a qualidade do conteúdo que encontrassem. Seria simplismo meu achar que isso acabaria em pornografia, Facebook e teorias conspiratórias?

Prof. José Antonio Dias disse...

Simplesmente sensacional. Quem sabe algum químico genial consiga criar um antídoto para a falta de senso das celebridades e pessoas públicas notórias, as quais vêm com frequência aos meios de comunicação prestar um desserviço à já tão combalida educação do nosso país?

João Carlos disse...

Há dois lados nesta moeda... A química, assim como a física e a biologia são assuntos fascinantes. Eu só gostaria de saber por que mil raios o ensino da química no 2º grau consegue transformar tudo isso em trabalho braçal, chato, desmotivante e repulsivo.
Existe coisa mais chata do que ser "armadilhado" com um "equilíbrio de equação química", notadamente daquelas que só acontecem no papel?
Será que a introdução ao princípio da "valência" tem mesmo que ser pretexto para exercícios e questões de prova de preenchimento dos suborbitais spdf?
Mas tudo o que eu disse sobre química, física (por que se tem que decorar as fórmulas, pelamordedeus?!... A aplicação das fórmulas é que é importante), serve para todas as matérias. Se eu não pretendo ser um linguista, de que me serve saber se tal ou qual poeta é gongórico ou romântico?

Caruê disse...

Compreendo a ´´critica`` extremamente simplista que a Denise fez, já fiz ela a respeito da literatura e da gramatica quando criança. Não preciso refutar ela o texto já fez isso.
O ensino de Química tem muito a ser melhorado, mas reduzir a 1 ano é uma piada, Decisões fundamentais a respeito do clima e da própria saúde necessitam de um conhecimento em Química, um cidadão e eleitor precisa saber Química, Física, Matemática Historia, economia e Geografia para votar.
Como sugestão: precisamos unir a teoria com a pratica realizando experimentos, precisamos dar uma abordagem ampla de como a ciência é feita, socar fatos é o que gera pessoas ignorantes.
´´Ciência é muito mais uma maneira de pensar do que um corpo de conhecimentos`` Carl Sagan

none disse...

Alexandre, Dias, João Carlos, Caruê,

Valeu pela visita e comentários. Irei subir suas observações em uma postagem.

[]s,

Roberto Takata

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